Palavra menos pesquisada em 2020: EMPATIA

“Os idosos já viveram o que tinham a viver”

“As pessoas obesas não tiveram cuidado a vida toda e agora estão preocupadas com a obesidade ser um fator de risco?”

“Vou a/faço festas pela minha sanidade mental”

Estas foram algumas das coisas que tive o desprazer de ouvir/ler este ano. Fui muito ingénua em acreditar que a pandemia iria tornar as pessoas melhores, que iriam fazer o esforço de desviar os olhos do próprio umbigo e colocarem-se no lugar dos outros. Esta desilusão só se compara àquela que tive, em 2019, quando descobri que andei a comer cássia durante 27 anos, a versão barata da canela que, quando ingerida a potes, é tóxica (e digamos que eu não sou muito comedida na quantidade que uso. Sabiam que dióspiro com canela é bom?).

Queria escrever uma mensagem de ano novo polvilhada com esperança, amor e derivados, porém não acredito que isto melhore. A “isto” não me refiro à pandemia, essa acredito que vá amenizar, mas sim às pessoas. Para a COVID-19 já há vacina, para o egoísmo não.

Feliz 2020 parte II !

P.S. Se quiserem polvilhar o arroz doce da passagem de ano com canela verdadeira, a chamada Canela do Ceilão (Cinnamomum zeylanicum), há no Lidl.

Fiscais pós-férias (aka mestres do “small talk”)

“Valha-me Deus, já CHEGA desta mania de usar estrangeirismos por tudo e por nada... E o orgulho em ser português?”

Small talk é mais curto que “conversa de circunstância”. Às vezes temos de deixar o nacionalismo de lado em nome das boas práticas do SEO. (já agora, para quando uma marcha anti- estrangeirismos?)

Bom, vamos ao que interessa. Chegámos à altura do ano em que muitas pessoas voltam ao trabalho depois de uns dias de férias (obrigatórios ou tirados de livre e espontânea vontade). Período esse em que 2 tipos de fiscais têm emprego:


Fiscal da Melanina Alheia

“Ai, estás tão branca! Não foste à praia?”. Este fiscal costuma ter trabalho durante todo o verão e não somente no período pós-férias. Será só nesta altura do ano que este inspetor vê com bons olhos pele rica em melanina? Ou serão apenas certos pantones?


Fiscal do Divertimento Alheio

É aquela pessoa que fica chocadíssima se não “aproveitaste bem” as férias. Se não viajaste (cá dentro ou lá para fora), se não foste à praia… Em suma, se não te divertiste segundo os padrões deste fiscal, então meu amigo… Este é um inspetor que em 2020 resolveu fazer uma pós-graduação e transformou-se em:


Fiscal do Distanciamento Social Alheio

“Nestas férias, por causa da COVID-19, resolvi ficar mais em casa” – esta desculpa já não pega. O distanciamento social já está fora de moda e quem ainda o pratica só tem um nome: OTÁRIO. (atenção, não critico quem viajou por Portugal para ajudar os negócios de hotelaria e restauração. Mas também espero que não critiquem as pessoas que ainda não se sentem preparadas para estas andanças).

Na verdade, estes fiscais são apenas pessoas que querem fazer small talk, mas o problema é que não querem small answers.

Disclaimer: Não, a pandemia não me está a afetar a perceção das estações do ano. Sim, sei que estamos no outono. Só estava aqui a organizar pastas e encontrei este texto. Serve como registo do verão do fatídico ano de 2020.

Apoquentações que até me fazem coiso – COVID-19

Acredito que, depois desta série distópica de sabe-se lá quantos episódios, a minha mentalidade vai sofrer umas certas alterações. Irei levantar questões inimagináveis sobre diversos assuntos. Mas, desde que passei a lavar a fruta com sabão azul e branco, já não me consigo espantar a mim própria (ter acrescentado o “a mim própria” é redundante?).

Pensemos na aquisição de uma nova habitação:

  • Tem varanda? Se não, algum raio de sol entra pela janela? Mas espera, se o apartamento for num andar muito alto, consigo estar na janela sem ter vertigens?

  • Se morar no 10º andar, tenho fôlego para subir sem ser de elevador com um carregamento de papel higiénico para fazer o guarda-roupa dos próximos 50 filmes d“A Múmia”?

  • Consigo olhar 24/7 para estes bibelots?

  • Tenho coisas para me entreter durante meses?

  • Se tiver de trabalhar em casa, tenho uma secretária confortável com uma cadeira que não me lixe as costas?

Pensemos, agora, na aquisição de um novo par:

  • Consigo estar fechado com esta pessoa durante um mês ou mais?

  • Será que usa muito papel higiénico?

  • É uma pessoa de muito alimento?

  • Tem etiqueta respiratória?

Pensemos, por fim, na aquisição de um filho:

  • Consigo estar fechado com esta pessoa durante um mês ou mais?

  • Tenho os meus antigos apontamentos da escola para rever a matéria antes que ele me faça perguntas?

  • Estou preparado para o meu filho me achar burro?

Sintam-se livres para adicionar questões e não se esqueçam de garantir já a vossa consulta de psicologia porque, pelo andar da carruagem, só vai haver vagas para daqui a sabe-se lá quando.

Ah, e lembrem-se que isto não está ganho. Já ouvi uns “Vizinha, parece que o vírus tá a ir embora”. Não está… Infelizmente veio para ficar e não podemos baixar a guarda, com ou sem vacina ao fundo do túnel.

Mais do que uma review, uma coisa – Concerto dos Dream Theater (02/02/2020)

Concerto a um domingo é começar a semana a comer bambu.

Bom, parece que os Dream Theater vieram cá dia no dia 02/02/2020 comemorar o 20º aniversário do Metropolis Pt.2: Scenes from a Memory e tocar umas músicas do CD novo Distance Over Time, porque, afinal, é este último que dá o nome à tour.

Não vinham a Lisboa há 3 anos, quase o tempo que demorou a termos novamente uma data palíndromo (quando a sequência de nºs dia, mês e ano pode ser lida da direita para a esquerda, e da esquerda para a direita). A última foi há 909 anos, em 11/11/1111, e a próxima é daqui a 101 anos, 12/12/2121, mais ou menos quando os Blind Guardian voltarem a Portugal. Ok, não foi assim tanto tempo (os 3 anos de espera de Dream Theater, não os já passados 10 anos desde que os Blind Guardian vieram ao Festival Ilha do Ermal (que já não existe)), mas quis usar a palavra “palíndromo” no texto.

Por falar em palíndromo, ou melhor, em datas, e aquela história de neste ano não ser aconselhado escrever-se a data com o ano encurtado, por exemplo 14/02/20, porque mentes maldosas podem acrescentar nº s e mudar para qualquer ano (14/02/2006, 14/02/2014, 14/02/2028…). Pelos vistos, deve-se, sim, escrever 14/02/2020.

Depois de uma data ;-) de informação não relevante para esta revie...coisa, vamos continuar com o que interessa. Bom, como o concerto começava às 20h, não jantámos, mas também tínhamos comido que nem uns texugos ao almoço. Sabiam que se costuma chamar texugo-porco ao texugo quando ele está gordo e texugo-cão quando está magro? Um pouco ofensivo, na minha opinião. Por via das dúvidas, e por boa educação, é melhor dar nome aos texugos, que, neste caso, se chamam texugos euroasiáticos.

Eu dispersar? Nunca… Bom, não jantámos, mas chegados ao Campo Pequeno estava um senhor à entrada da sala (e também dentro dela) a vender pipocas. Presságio do filme dramático que estava por vir envolvendo LaBrie a desafinar que nem um texugo-cabra?

Nunca tinha visto um concerto no Campo Pequeno. A sala de espetáculos é pequena (shocking!), mas a arquitetura é bonita. Porém, não deixei de me sentir um pouco gado bovino ali no meio da praça. O chão tinha alcatifa, mas sentiam-se umas tábuas por baixo. Não me deu uma sensação de segurança. Pareciam umas placas tectónicas que poderiam, dentro de momentos, libertar toda a sua energia acumulada. O libertador? LaBrie, claro. Ele não parte vidros, ele faz chocar placas tectónicas. Para além de alcatifa, o Campo Pequeno tem também uma enfermaria. Ideal para quem leva com um touro ou, neste caso, para quem ouve o LaBrie.

Vá já chega de bater no LaBrie. Porquê a falta de fé? Porque uns dias antes do concerto tinha visto um vídeo desta Distance Over Time Tour. Senti vergonha alheia polvilhada com pena.

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Perante isto, as minhas expectativas desceram até ao subterrâneo, fazendo companhia às placas tectónicas.

Antes de começar o concerto, havia música ambiente no ar e, no palco, atrás dos instrumentos, via-se na espécie de tela uma projeção de uma imagem animada que tinha a ver com o CD novo Distance Over Time: robots do género do filme I, Robot. Robots fazem-me sentir sempre desconfortável.

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A banda de apoio foi muito pontual, começando a tocar às 20h em ponto. Tocaram algumas músicas do seu CD novo (que fiquei a gostar mais depois de ouvir ao vivo), a música do acidente de carro do Petrucci criança e In The Presence of Enemies – Part 1 do CD Systematic Chaos, mais conhecido pelo CD das formigas. Nesta cerca de 1h, o suporte do microfone do LaBrie era uma mão robótica a segurar uma caveira humana, “escultura” alusiva ao CD novo.

20 minutos de intervalo. Torres, para variar, juntaram-se à minha frente para me dificultar o visionamento da banda principal. E não são umas torres quaisquer, são torres que não têm noção do espaço, tais Torres de Pisa.

Tal como a banda de apoio, os Dream Theater foram pontualíssimos. Chegadas as 20h30 lá estava o hipnoterapeuta a fazer-nos regressar a 1999, ao Metropolis Pt.2: Scenes from a Memory. Desta vez, o suporte do microfone do LaBrie era um infinito - Spirit Carries On para sempre?

O Metropolis Pt.2 é um CD especial. É o primeiro álbum conceptual da banda e conta-nos uma história cheia de plot twists que eu só fiquei a conhecer por causa do concerto. Sim, eu não ligo, ou melhor, eu não costumo perceber as letras. Tenho um problema de não conseguir entender muito bem palavras cantadas. Isto faz-me gostar de bandas só pelo som e não tanto pelas letras.

Depois do concerto fui pesquisar as letras e, como um bom poema, tive de recorrer à sebenta Wikipedia para perceber a história. Aqui vai um resumo da ópera:

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Resumo das scenas

Nicholas está numa sessão de hipnose porque deve ter alguns macaquinhos no sotão. Guiado pelo hipnoterapeuta, descobre que foi Victoria numa vida passada e que ela foi assassinada. Victoria era casada com Julian mas este tinha problemas com o álcool, com as drogas e com o jogo. Então ela acaba por se envolver com o irmão dele, Edward. Após umas investigações hipnóticas, Nicholas fica convencido que Julian matou Victoria e Edward. Mas vai-se a ver e, afinal, foi Edward que matou Victoria e Julian porque eles tinham começado a reconciliar-se. Edward forjou a cena do crime e assumiu o papel de testemunha no caso. Antes de matar Victoria, ele diz-lhe "open your eyes", o mesmo comando que o hipnoterapeuta diz a Nicholas para o fazer acordar da hipnose. Já acordado, Nicholas vai para casa feliz da vida porque o espírito dele nunca morre. Não repara é que o hipnoterapeuta seguiu-o e este surpreende-o novamente com um "open your eyes". Ouve-se um grito de Nicholas. O hipnoterapeuta era o Edward reencarnado. Matou Nicholas para fechar novamente o ciclo.

E ESTA, HEIN?!

Gostei bastante de ouvir este CD inteiro ao vivo. O LaBrie surpreendeu-me. Não me pareceu muito desafinado, mas também o som não estava espetacular. Verdade seja dita, o homem já tem 56 anos e merece o meu respeito e um ralhanço virtual por andar a fazer tours de quase 3h cada concerto. Não há voz que aguente. E nas minhas pesquisas pós-concerto, descobri que em dezembro de 1994 ele teve uma intoxicação alimentar e chamou pelo Gregório com tanta intensidade que rompeu as cordas vocais. Inteligente, foi fazer uma tour logo no mês seguinte. Resultado: só se sentiu “vocalmente normal” em 2002. Não me interessa que já não cante como antes. Sempre ouvimos o Mustaine a cantar mal e ninguém se queixa. Ao menos já ouvimos o LaBrie a cantar bem. Atenção, não trocava o Mustaine por mais ninguém em Megadeth. Podem pousar os tomates podres.

A Scene Six: Home foi um sucesso para mim e a Scene Eight: Spirit Carries On foi iluminada por caga-lumes tecnológicos.

No encore o LaBrie voltou com o seu suporte de microfone robot e tocaram mais uma música do CD novo, a At Wit’s End. Foi um pouco anticlimático. Preferia um Pull Me Under, ou até mesmo, a parte I do Metropolis.

Durante todo o concerto o teclista Jordan Rudess esteve às voltinhas com o seu teclado. Aquilo virava para todos os lados, até fiquei com motion sickness. O baterista Mike Mangini parecia um puto charila com um boné com a pala para trás (ainda não percebi porque é que os fãs choram tanto a dizer que ele não é igual ao Portnoy. Pois não, são pessoas diferentes, pasme-se…). O Petrucci lá estava com os seus solos (gosto quando eles ligam bem com a música, quando é só show off irrita-me um pouco). O baixista John Myung não se dá muito por ele, mas desconfio que seja a melhor pessoa do quinteto. Faz ele bem em se afastar da luta de egos (falo isto com zero conhecimento de causa).

E para acabar, só peço uma coisa: donos de salas de espetáculo, deixem de contratar gajos com mochilas de cerveja às costas para andar no meio da plateia em pé. Atrapalha a magia, a sinergia entre o público e o artista. Fotógrafos eu aceito, agora beerbusters não.

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Qualquer semelhança com a ficção é pura coincidência.

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P.S.: Se quiserem ler realmente uma review e não uma coisa: Arte Sonora - Dream Theater, Um Enorme Coração Sem Alma

Dream Theater Setlist Campo Pequeno, Lisbon, Portugal 2020, Distance over Time

Doce vício

(Texto da 4ª Jornada do Campeonato de Escrita Criativa organizado por Pedro Chagas Freitas. Os desafios de cada jornada não podem ser divulgados. Ah, e já acabou. Se ganhei? Sim, juízo. Vá, fiquei em 15º lugar (foram 78 os participantes). Se agrupar as pontuações iguais (pessoas com pontuações iguais eram distinguidas apenas pela ordem alfabética do seu nome) fiquei em 9º lugar (em 55).)

A nossa relação precisou sempre de ser adoçada por terceiros. Depois do jantar ficávamos os dois a olhar um para o outro e eu não conseguia resistir. Tinha sempre de juntar outra variável à nossa equação. Até que, depois de meses a tentar, lá consegui. Conseguimos, aliás. Foi difícil, não vou negar… Tentativa após tentativa. Umas falhadas, outras não. Mas tinha de fazer o esforço. Tu não merecias que eu nunca te tivesse experimentado a sós. Mas parecia que cada vez sentia mais o amargo na boca. 

Até que chegou o dia. Tinha acabado de acordar. Fui à cozinha. Liguei a máquina. Tirei um epiQ do frasco de cápsulas e coloquei-o na espécie de prensa. Fui buscar a minha chávena favorita. Carreguei no botão. Começou a escorrer. O cheiro reconfortante encheu a cozinha. Mas eu cada vez ficava mais nervosa. “Será que vou conseguir?”. A chávena encheu. Olhei para o açúcar. Abanei a cabeça. “Hoje não…”. Levei o líquido escuro e aromático aos lábios. Fiz uma careta. “Mas espera…”. A cara feia foi automática, não foi pelo amargo do café. “Tu queres ver que…”. E a partir desse dia tudo mudou. 

Já não preciso de terceiros para adoçar a nossa relação. Hoje, até consigo notar as diferenças no sabor das cápsulas Delta Q. Antigamente, para mim, a única distinção era o número da intensidade escrito nas caixas, mas agora é tudo diferente. E quando tento experimentar pôr açúcar ou adoçante… Parece água com açúcar. Nem quero pensar nisso.